Geraldo Roberto da Silva é artista plástico, diretor de teatro, professor universitário. Vamos conhecer sua faceta de escritor. Trata-se de um conto: Fevereiro - que constará de um livro a ser lançado em breve.
FEVEREIRO
26 de fevereiro (de manhã):
Pouca
gente no enterro. Quem, porventura, sentiu a falta de Rosângela compreendeu.
Deu razão.
No
céu – azul sem nuvens – daquela manhã no cemitério, uma gaivota sem bússola fez
voltas e voltas, sem saber que rumo tomar. Decidiu-se pelo norte. Pelos seus
olhos, vendo de cima, a estrada negra e longa de asfalto parecia um novelo
desenrolando-se, sem ter fim. É provável que a extensão do alcance de sua vista
pudesse perceber, lá de cima, em algum instante do seu caminho, um carro
Brasília verde, indo também naquela direção. Norte.
25 de fevereiro (9 horas da manhã):
Quando
Vicente Menezes torceu a direção para a direita, pisou no acelerador e deixou
que o ônibus esmagasse a multidão na calçada, deve ter se sentido como um homem
que pisava, revoltado, as flores delicadas de um canteiro. Quem pudesse contar
diria que, minutos antes, parado no sinal, ele olhava para a rua em frente, com
os olhos perdidos de alguém que estivesse em transe. Quem pudesse
saber diria que ele fechou os olhos e arremeteu o veículo, com o mesmo estado
de embriaguez mental com que um louco gira o tambor e aciona a esmo, o gatilho
numa roleta russa. Outros talvez dissessem que ele o fez gritando e com os
olhos esbugalhados de um possuído. Seriam versões. Meras versões de um fato. O
que se lembra, e isso era certo, é que aquela manhã era uma das mais quentes de
fevereiro.
Os
vidros da loja não foram suficientes para deter a máquina desgovernada que
irrompeu calçada acima, debaixo de gritos, espanto e terror. Metade do ônibus
invadiu a loja. Entrou, sem pedir licença, derrubando manequins, embaraçando-se nos panos e
arrastando consigo um cheiro de corpos, de sangue e de pneu queimado.
A
quilômetros dali, naquele dia, naquela hora, Rosângela Menezes acordou
assustada do cochilo inquieto, no banco da frente da Brasília verde, ao lado de
Élton, que dirigia em busca de um horizonte novo.
“O
que foi?”, perguntou ele.
“Um
sonho ruim.”, ela respondeu.
“A
menina está agitada. Vê o que está acontecendo com ela”, disse ele, passando
por cima de todas as miragens que evaporavam do asfalto negro e sem despregar
os olhos da estrada interminável que tinha à sua frente. Fazia muito calor.
“Perdeu
o bico.”, respondeu Rosângela. Acomodou-a melhor, procurando tapar seu rostinho
com uma fralda, e tranqüilizou-se, quando ela fechou os olhos novamente e voltou
a dormir.
“Tente
dormir de novo. Ainda temos muito chão pela frente.” Élton falou para
Rosângela, tentando ser gentil, mas sem esconder a irritação com o calor e com
os buracos da estrada malcuidada.
“Não
consigo, Tou agoniada!”, Rosângela respondeu acendendo um cigarro e deixando
que seus olhos se perdessem na paisagem monótona de pastos e de vacas. No
imenso céu azul em frente, uma única e volumosa nuvem em forma de caramujo
lembrou-lhe dias esquecidos da infância, quando, para se distrair, adivinhava o
que as formas das nuvens queriam representar.
Rosângela
ligou o rádio do carro. Parou na estação preferida. O noticiário sucedeu uma
música e trouxe a notícia. Entre detalhes confusos e a voz nervosa do repórter
que cobria o fato, sobrou uma certeza: o ônibus era o 212. O ônibus de Vicente.
Não dizia quem e quantos morreram. A notícia atingiu Rosângela como um coice de
mula.
Élton
foi compreensivo. Fez o retorno e o caminho de volta. Rosângela não enxergou
mais nuvens, nem pastos verdes pontilhados de vacas. Chegaram no comecinho da
noite. O telefonema que ela havia dado do posto da polícia rodoviária para uma
vizinha da rua confirmara. Era Vicente. Não deu tempo à vizinha de falar se
Vicente havia morrido.
Foram
direto para a Santa Casa de Misericórdia. Élton ficou com a menina no carro e
Rosângela foi enfrentar os corredores frios. Espremidos nos corredores, os
parentes vítimas – as flores esmagadas do canteiro – choravam desesperados,
tentando inutilmente interpretar os azares do destino. Uma enfermeira deu a
notícia já sabida: “Vicente morto.”. Foi ao prédio contíguo, o IML. Outra
enfermeira lhe entregou o relógio e a carteira com os documentos. Amassado,
entre a sua foto e a da filha, o bilhete que ela deixara, antes de ir embora
com Élton. Não lhe deixaram ver o corpo naquele momento. Alguém a ajudou a se
sentar num banco e abriu as janelas para que ela respirasse ar puro. Um cheiro
de madressilva que o vento trouxe da rua ajudou-a a se recompor do choque.
Rosângela
respirou fundo e lembrou uma tarde distante, num domingo, no parque, quando
Vicente lhe comprou flores e andaram os dois, no lago, de pedalinho, como duas
crianças. Lembrou também seu choro de homem derrotado numa noite de outubro,
quando vendeu a casa para pagar uma dívida de jogo. Lembrou-se de quando beber
deixou de ser ocasional para ele, para ser uma fuga do desespero. Lembrou-se do
primeiro tapa...
Então
chorou forte. Chorou um choro tão forte e de tanta revolta, porque descobria
quão pouco espessas eram as cicatrizes que cobrem as feridas da alma. Pensou no
marido morto e não conseguiu evitar, para si, uma culpa indireta por tantas
vidas decepadas no desastre.
Um
cheiro forte de formol evadiu-se pelas frestas das portas. Sentiu uma leve
tontura. Quis ir embora, para longe. Teve forças ainda para localizar no
corredor o cunhado Walmir, que ouviu, compreensivo, pedir que ele tomasse as
providências para o enterro. Walmir, com a alma tonta pela perda do irmão, não
teve forças nem argumentos para cobrar qualquer coisa da cunhada.
Quando
Rosângela voltou ao carro, a menina estava acordada e brincava com Élton no
jardim. Tomou-a nos braços e pediu a Élton que as levasse embora, para onde ele
escolhesse, desde que fosse bem longe.
Recomeçaram
de novo a viagem. Élton retomou a mesma estrada, com o mesmo calor das horas
dos dias. A noite era tão quente, quanto.
Rosângela
sentiu, que, devagar, a opressão desafogava-se do seu peito, e passou a mostrar
à filha os vaga-lumes que acendiam luzinhas nas sombras da noite. Aos poucos,
preguiçosa, uma lua redonda e gigante, arrastando seu passo lento no céu, abriu
uma luz de cinema que clareou toda a estrada e pareceu lavar o imenso tapete de
asfalto que conduzia os três para uma vida nova.
26 de fevereiro (comecinho da
tarde)
A
Brasília verde, insistente e corajosa, engolindo o asfalto da estrada. Continua
o calor forte de fevereiro. Nenhuma nuvem no céu, nenhuma esperança de chuva.
Da janela do carro, no colo da mãe, encantada, uma garotinha olha no céu uma
gaivota branca, única presença estranha contaminando aquele azul.
GERALDO ROBERTO DA SILVA
Artista plástico e animador cultural
tel: 05392414491
e-mail: geraldoroberto@gmail.com
Artista plástico e animador cultural
tel: 05392414491
e-mail: geraldoroberto@gmail.com
Martha Tavares Pezzini
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