segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Índia pega no laço - Renata Rios

 

A Índia pega no laço

"Jacirara vivia livre e solta na mata, na aldeia, a nadar nos rios e cachoeiras, a ajudar sua mãe nos preparativos das refeições e festejos da aldeia pataxó onde vivia com sua família e demais membros. Era uma índia linda, de cabelos negros e brilhantes como a noite, olhos pretos, morena queimada pelo sol, lábios pequenos, de sorriso fácil. Também era conhecida por seu gênio indomável, sua “brabeza”. Prometida em casamento desde a tenra idade, agora, aos dezesseis anos, iria, em breve, se casar com o filho do cacique da tribo, Abaeté, rapaz jovem e honrado, bonito e forte, admirado por todas as moças da tribo. Mas, ele seria dela e Jaciara bem o sabia. No início do século 20, mais precisamente no ano de 1938, era comum a prática de caças no nosso país. Geralmente, os rapazes jovens saiam para caçar com seus pais. Isso mostrava o “poderio” de uma classe. Os ricos gostavam de fazê-lo. Otávio era um deles. Aos vinte e um anos, atirava de forma exímia. Alto, loiro, sedutor. Porém, até então, contrariando os conselhos do pai coronel Juliano Montezzano, não desejava se casar. Preferia viver as aventuras juvenis. Aquela manhã de sexta-feira amanheceu ensolarada e bonita como sempre. Ali no sul da Bahia era quase sempre assim. Se chovia um pouco, logo um arco-íris despontava no céu e dava espaço ao sol novamente. Otávio havia saído para caçar com seu pai, irmãos, primos e tios, pela primeira vez, nos arredores do sul baiano. Isso porque eram de Ilhéus e, por ali, passavam uma curta temporada. As mulheres, incluindo sua mãe Aurora, nunca podiam participar deste tipo de maratona. Enterravam-se em casa e junto dela iam-se sua mocidade e vida… Jaciara, nesse dia, ficou encubida por sua mãe, Iracema, de buscar na mata alguns “enfeites” para o festejo logo à noite. Iriam comemorar o início da lua cheia, a quem chamam de Jacy. Jaciara amava a lua, contempla-la e dançar para ela. Sentia uma energia sobrenatural ao fazê-lo. Prometeu voltar logo e se foi. Ao sair da tribo , sentiu um arrepio diferente na pele, mas, pensou ser a emoção que à noite lhe aguardava e foi-se rapidamente em direção à densa mata. Ao chegar à mata, logo começou sua busca pelos enfeites pedidos por sua mãe, lindos arbustos, gravetos, sementes raras e coloridas, penas de araras e tudo mais. Foi quando com seus ouvidos aguçados escutou um pequeno barulho, que, aos poucos, foi tornando-se maior. Um animalzinho assustado, um filhotinho de javali correu desesperado para o seu lado. Logo depois, em questão de segundos, um estampido e outro. Por sorte, Jaciara não foi atingida. Mas, o pequeno animal não teve tanta sorte. Estava morto. Jaciara pode ver, antes de sua morte, o medo em seus olhos. Nunca mais se esqueceu daquele dia. Por esse e por outros motivos. Otávio deu um grito. “ Peguei o bichano atrevido. Agora tu é meu. “ Jaciara teve ânsia de esganar o covarde, mas, ele estava com uma grande espingarda e ela conhecia de cor as histórias que sua avó contava sobre os caçadores impiedosos que, antigamente, andavam por ali. Virou-se rapidamente para fugir, mas. Ao virar suas costas, sentiu algo forte a lhe puxar a pele jovem e macia. Otávio a puxou rapidamente para si. “ Estou com dupla sorte hoje! “ Jaciara foi pega no laço pelo horrendo rapaz. Jaciara cerrou-lhe os dentes, como uma onça acuada, cheia de dor e agonia. “Deixe-me ir, seu branco horrível “- gritou a Índia em sua língua pataxó. Mas, foi em vão. Ele não entendia sua língua e, muito menos, tinha empatia por ela ou quem quer que fosse. Jaciara, embora tivesse lutado bravamente, foi-se, forçadamente, embora com o moço. Na tribo, sua mãe morreu de tristeza. Sabia que sua filha não estava morta na mata, pois, nunca acharam seu corpo ou vestígios do mesmo. Sabia que ela, em algum lugar, sofria de saudades da tribo, das noites estreladas, do seu povo amigo. Abaeté, depois de longos anos de uma espera em vão por Jaciara. acabou casando-se com outra Índia, irmã mais nova de Jaciara, mas, nunca se esqueceu da jovem Índia linda como a lua. Jaciara, por sua vez, nunca mais foi a mesma. Uma noite, conseguiu desvencilhar-se das cordas que a prendiam como a um animal grotesco. Fugiu. Preferiu morrer pelas armas dos capatazes da fazenda do Coronel Juliano. Pelo menos, seria livre. Sua alma vagaria pelas matas virgens e pela aldeia Pataxó. E lá, de certa forma, se encontraria com seu amado Abaeté, sua mãe Iracema, seu pai, irmãos, amigos da tribo. Dançaria à luz da lua como tanta gostava."

Renata Rios, 28/10/23.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário