Prefácio
– Caminho nas nuvens
“...o
que é peculiar ao gênero literário das memórias é que a reconquista do vivido
não é somente um trabalho de restauração, mas sobretudo um esforço de
renovação. Ao narrar tão fielmente como puder o que fez, viu e sentiu na
vida, o homem observa os acontecimentos e as pessoas com a inteligência e a
sensibilidade que são dele no momento que escreve e não aquelas que eram
suas, nos tempos em que procura arrancar do olvido...”
(Afonso
Arinos de Melo Franco).
A cidade de Matozinhos se orgulha de muitos
filhos. Geraldo Roberto da Silva, para os amigos de Matozinhos, apenas
Betinho, está entre eles. Conheci Betinho naquela cidade para onde o amor me
levou. Na vida tranquila, de então, todos se conheciam. Nunca nos aproximamos
e nos falamos. Entretanto, somente agora, com as redes sociais e o gosto pela
escrita foi que nos aproximamos. Conhecia sua família, muito conceituada e
querida na cidade. Era mais próxima do seu irmão Cristiano, muito amigo do
meu marido e pessoa de destaque em vários setores da sociedade local da qual
foi vice-prefeito. A distinção do convite para prefaciar seu livro de
memórias, O caminho nas nuvens, foi uma grande honra e uma alegria sem
tamanho.
Mergulhar no universo das nossas lembranças exige de nós a certeza de que
observaremos o desenrolar dos acontecimentos como se fôssemos ao mesmo tempo,
protagonista e observador. Como se houvesse o eu, que descreve a ação
e um outro eu que a vê com os olhos do agora. Oxalá muitos dos
personagens citados neste livro houvessem escrito suas memórias o que Betinho
teve a coragem de fazer.
Logo no início do livro, o autor questiona,
ansiando por se autoconhecer:
“por que tanta sensibilidade que faz com que
eu potencialize sofrimentos e mergulhe em meus sonhos de forma tão intensa?”
Os pensamentos do autor ocorrem aos saltos
e ele vai escrevendo num vai e vem, sem seguir uma linearidade temporal,
próprio de quem quer contar tudo, sem nada perder o que torna a leitura mais
instigante. Seguirei o mesmo estilo. Impossível colocar aqui todos os textos
e aforismos que destaquei desta narrativa onde o autor está sempre deixando
transparecer sua sensibilidade (P. 9):
“...nossa fragilidade no mundo e
nossa pequenez perante essa exacerbação de coisas e de fatos que rodeiam
nossas vidas...”
E nesta autoanálise reconhece:
“nunca foi fácil ser quem eu sou!
Era muito difícil quando criança. Eu sentia o peso das responsabilidades que
eu me impunha e não conseguia explicar para ninguém.”
Há um transbordar de ternura e
carinho quando se refere à sua mãe e ao seu “enorme” amigo, Aluízio Viana.
Estes comentários são apenas sinalizações a lhes despertar a vontade de
conhecer mais desta grande aventura de um sonhador e suas pegadas deixadas
nas trilhas que o conduziram aos lugares e momentos mais caros de sua
existência. Ele que leu aos quatro anos e nunca mais parou, que se diz
resistente, que reza todas as noites, mas dá bronca a Deus, que fala com os
mortos, viaja no caminho dos perfumes, sempre enfrentou os desafios que a
vida lhe apresentou e como não poderia deixar de ser viveu inúmeros momentos
de vitórias e realizações pessoais.
Na (P. 19), Betinho desabafa:
“Tenho 69 anos de dores, de
inquietudes, de autocobranças e de realizações menores do que aquelas para as
quais um dia me planejei.”
O caminho nas nuvens é o quarto
livro de Betinho que se declara artista plástico e animador cultural; se
aposentou no magistério na FURG-RS; fundou e dirigiu um grupo teatral, O
Flato do Gato; foi premiado em vários salões, exposições e galerias de relevo
nacional e internacional. Segui-lo nesta sua jornada é nos tornarmos
cúmplices de uma vida bem vivida, sem querermos perder nenhum detalhe como as
doces lembranças da infância e vivências familiares, repletas de amor, ternura
e respeito, aqui compartilhadas (p.21 a 24). São cenas de uma família que
podemos classificar como modelo. A narrativa, vai registrando os fatos
históricos e sua repercussão na sua cidade e na vida do seu povo: a
construção de Brasília, a decadência da Usina e da Fábrica de tecidos Peri
Peri, bem como o reacender da esperança com a instalação da nova fábrica do
cimento Campeão, a COMINCI. (P. 60).
Como não podia ser diferente a
todo aquele que os viveu, o autor decanta os anos sessenta (P. 65): - “A
história do mundo, certamente se divide em antes e depois dos anos sessenta.”
- Para em seguida, discorrer sobre o
lamentável período histórico político que se iniciava no Brasil a partir de
1964. Tema que será abordado por ele mais adiante.
A existência humana não passa de uma pequena
passagem quando a vemos na totalidade. Entretanto, há uma grande riqueza de
imagens, reflexões, fotografias das almas que conviveram e participaram dos
momentos mais significativos vividos por alguém. Assim foi com seu pai:
respeito e amor:
“A cabeça pensava e o corpo não
obedecia. Assim foi minha curta carreira futebolística, sem glórias. Fiz
gols, um ou outro, aqui e ali... Muito pouco para quem sonhou um dia jogar no
Cruzeiro para dar uma alegria para o meu pai.”
“Entre eu e meu pai, o futebol foi
a ligação mais forte. Talvez se eu tivesse a tendência para a música
pudéssemos ter nos conectado mais. Creio que ele tinha uma tristeza por
nenhum dos filhos ter escolhido os caminhos musicais, ele que era
clarinetista e talvez sonhasse com isso.” (P. 75).
Arguto e sensível, jovem, entre 15
a 18 anos, Betinho foi capaz de admirar e ter como modelos seus professores e
outros jovens que não se acomodavam, mas estavam sempre em busca de alguma
realização fora dos estreitos limites de uma cidade pequena em tempos de
raras chances:
“Eu tive, já disse aqui,
professores especialíssimos, privilégio imenso considerando a nossa
Matozinhos pequenininha e de pouca tradição intelectual.”
Cita: Arsênio Flávio, Geraldo de
Paula Martins, Antônio Drumond, entre outros jovens professores que se
destacaram pela inteligência e esforço. E continua lembrando aquela fase
de ouro da Educação na sua cidade:
“...o poder intelectual de uma
família: Nilse, Afonso e Lincoln Pezzini, três irmãos brilhantes.”
Aqui me faço também saudosista ao
evocar a figura dos professores citados anteriormente. Fui aluna de Afonso e
Lincoln e me permito acrescentar à expressão “poder intelectual”: “o ideal e
a vida dedicada ao ensino.” Destaco o nome de Nilse Mercês Pezzini uma mulher
que nasceu para o sagrado ofício do magistério deixando sua marca na história
da Educação em Matozinhos. Permito-me ainda, destacar uma citação do autor,
neste espaço de saudosismo e saudade:
“Lincoln ou Babi, como era conhecido, não
pertenceu à minha geração embora isso não me impedisse de admirá-lo. Foi meu
professor de Geografia, dando aula com clareza e método. Foi um dos primeiros
intelectuais que me serviram de referência, determinando admiração e
respeito.”
Com Betinho, revivemos as
lembranças da sua vida e concomitantemente, da história da cidade de Matozinhos.
Uma vida replena de afetos, aventuras, responsabilidades, lutas, sonhos e
realizações que nos remete àqueles tempos em que “éramos felizes e não sabíamos”.
Com alguns trechos, sem comentários, completo este prólogo, evitando cansar o
leitor, certamente ávido de encetar esta viagem pelos caminhos nas nuvens,
com Betinho, ou Geraldo Roberto da Silva.
“ O Colégio Estadual já existia e
lançaria em 1966 o Científico e se tornaria, naqueles anos seguintes,
uma referência no ensino da região pela qualidade indiscutível de seus
professores: Arsênio e posteriormente Dona Carolina, em Português; Geraldo de
Paula Martins, em Matemática; Lincoln Pezzini, em Geografia; Afonso Pezzini,
em Química e Biologia, entre outros.”
“Eu acompanhava desde 61, ano de posse e renúncia de Jânio Quadros, as
oscilações nos caminhos do Brasil. Vi o país com cheiro de pólvora querendo
impedir que João Goulart, o vice, assumisse, acendendo a perspectiva de golpe
vinda dos quartéis.”
“Contradigo-me mais uma vez
dizendo que rezo todas as noites e desaforadamente digo que duvido de Deus.
Peço sempre a Ele desculpas por ter tantas dúvidas, mas que cuide, ignorando
o meu desaforo, desses meus afetos aí enumerados, sem se esquecer dos bichos,
é claro! E juro, com meus desafetos, minha maneira de oferecer a outra face é
rezando por eles.”
“A vida é uma coisa louca e cheia
de mistérios! Julgo isso quando penso em mim, penso em por que “eu”, por que
tanta sensibilidade que faz, como sempre digo, que eu potencialize
sofrimentos e mergulhe em meus sonhos de forma tão intensa. Mergulho, sem
tapar o nariz! Foda-se se me afogo...”
“Marcar um gol é como dar um beijo,
como achar a palavra certa que arremata um texto, como reler Carpentier...”
“Pudesse, às vezes, eu pararia o
tempo e transformaria os momentos bons que vivi em uma constante mágica que
revestisse de eternidade esses eventos. Pudesse, eu não acordaria de certos
sonhos! Pudesse, eu não deixaria a saudade doer e arderem meus olhos como
agora, quando me proponho lembrar de tudo. O mundo segue lá fora, além da
minha janela e de todas as janelas. Ouço barulhos do meu quintal: pássaros e
murmúrios mágicos que não sei de onde vêm. Distraio-me vendo um pequeno
beija-flor buscando a flor que quer beijar.”
Não perca a oportunidade de fazer você mesmo essa
viagem no tempo das gratas lembranças, muitas delas vividas também por nós ou
como protagonistas ou como observadores. Paul Valéry diz que passado e
presente são as duas maiores invenções da humanidade. Nosso autor uniu os
elos desses tempos supostamente contrários, pela memória. Que seja um exemplo
de vida a nos desafiar.
Martha Tavares Pezzini
Pedagoga - Orientadora Educacional; escritora e poeta.
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Que felicidade a sua palavra, o seu texto amigo!
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