quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Metade - Ferreira Gullar

 

    Metade

              Ferreira Gullar

Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito

Não me tape os ouvidos e a boca.

 

Porque metade de mim é o que eu grito,

Mas a outra metade é silêncio...

 

Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.

 

Porque metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.

 

Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.

 

Porque metade de mim é o que ouço,

Mas a outra metade é o que calo.

 

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.

E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.

 

Porque metade de mim é o que eu penso,

Mas a outra metade é um vulcão.

 

Que o medo da solidão se afaste

e que o convívio comigo mesmo

se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto,

um doce sorriso,

que me lembro ter dado na infância.

 

Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.

 

Que não seja preciso mais do que

uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.

 

Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

 

Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florecer.

E que a minha loucura seja perdoada.

 

Porque metade de mim é amor,

e a outra metade...

também.

 

 

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