sábado, 19 de junho de 2021

O que junho nos traz - Marilene Guzella Martins Lemos

 

 

O QUE JUNHO NOS TRAZ

 

Marilene Guzella Martins Lemos

 

Junho chegou. Com ele, as comemorações. Dia dos Namorados, Dias de Santo Antônio, São João e São Pedro. Os últimos regados a quentão e a base de fogueiras, quadrilhas, bandeirinhas, etc. Interessante, no dia 29 a igreja diz: dedicado a São Paulo e São Pedro. Mas parece que São Paulo nem é convidado para a festa. Não falam seu nome. Por que seria? Ouvi falar que esses santos não se davam bem. São Pedro era muito ranzinza, vivia às turras com a mulher e principalmente com a sogra. São muitos os casos de suas querelas. São Pedro pregou por um lado, São Paulo por outro. Depois São Pedro marcou território, passou as mãos nas chaves do céu e lá só entra quem ele permite. E São Paulo? Culto, achava-se superior, afinal era cidadão romano. Suas palavras permanecem. No dia 24 é a vez de São João, São João Batista, não confundir com o Evangelista, o do Apocalipse. João Batista batizou Jesus no Rio Jordão. Depois, por falar mal do Rei Herodes, este mandou cortar-lhe a cabeça e ofereceu-a numa bandeja de prata a Salomé após ela executar uma linda “dança dos sete véus”. Dia 13 festeja-se Santo Antônio, o casamenteiro. Os tempos estão mudados. Será que alguma jovem ainda coloca sua imagem dentro d ́água e de cabeça para baixo? Surgiu uma piada de que o recurso tornara-se inoperante porque o santo fizera um curso de mergulho e possuía todos os equipamentos para permanência debaixo d ́água. Dia dos Namorados remete a Histórias de amor. Hoje em dia as principais narrativas amorosas são as novelas, os Contos de Fadas Modernos. Impossível não lembrar os amores célebres da história e literatura: de Romeu e Julieta, todos conhecem o triste final. De Dircéu e Marília, também. Abelardo e Heloisa terminaram a vida encerrados em conventos. Tristão e Isolda só puderam se unir depois de mortos. Os arbustos brotados de suas sepulturas se entrelaçaram formando um dossel. Sobre Othelo e Desdêmona, que horror; ele, por ciúmes, matou-a. Citaria inúmeros outros, célebres porque trágicos, vítimas dos contextos sociais da época. Hoje seria diferente. Capuletos e Montéquios deixariam as diferenças de lado fazendo uma composição em apoio a um “dodge” em sua eleição. Tudo dependendo de um interesse financeiro maior, proporcionando a Romeu cortejar livremente a sua amada.Na atualidade, Dirceu, ou melhor, Gonzaga, não iria em degredo para a Africa , seria exilado em Paris ou mais perto, no Chile. Maria Dorotéia teria ido junto. Logo estariam de volta, ele ocupando uma cadeira no senado. Abelardo e Heloísa deixariam os respectivos conventos e iriam viver tranquilamente seu grande amor. Tristão diria: - Pois é, Tio Marco, o senhor mandou-me buscar sua noiva, a linda Isolda. O caminho era longo, nós viemos conversando... conversando...Infelizmente para Desdêmona a situação não mudaria. Os Othelos continuam a solta e cada vez mais numerosos. Prosseguem matando Consideram a mulher como propriedade e que “honra” deve ser lavada com sangue. Pobres Desdêmonas do século XXI. Até quando?

 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

 GRAVIDEZ DA PEDRA

Geraldo Reis

Os homens não consideraram a gravidez da pedra
e não consideraram o quanto a pedra era triste
se nela havia ouro
se a pedra era um sonho.

Os homens não consideraram se a pedra era rua
se a pedra era canto
se embalava os pássaros
se dominava a distância.

Os homens não se deram conta de que a pedra era feita
de um certo elemento que era o próprio homem,
de um certo minério que havia no sangue e fazia a
memória
do que no homem era pedra
do que na pedra era homem.

O homem passou pela pedra
sem notar a gestação do menino que havia na pedra
o quanto era pedra na pedra
e o quanto era sonho
o que era cobiça
o que era pesadelo
o era vício

o era abdome.

Os homens não consideraram os tímpanos da pedra
o ventre da pedra
os medos da pedra
os imponderáveis mistérios da pedra
o segredo imemorial que levava no ventre.

E não consideraram os caminhos apontados
pelos rumos impolutos da pedra
o degredo que representava a pedra
a redenção que viria da pedra
a postura interior da pedra
a transfiguração que viria
do lado sobremaneira esquerdo da pedra
o alumbramento talvez de possuí-la.

E não consideraram o que na pedra era pedra
o que na pedra era homem
o que na pedra era argila.

Os homens não consideraram os artifícios da pedra
os conflitos íntimos da pedra
o silêncio interior da pedra
o compromisso de monumento da pedra
o sacrifício peridural da pedra.

Não consideraram os limites humanos da pedra

a complexa dimensão da pedra
as severas dificuldades da pedra na sua existência frágil.

A vida inteira passamos pela pedra
sem considerar o que na pedra é pedra
o que na pedra é útero
o que na pedra é homem.

A vida inteira o homem caminha de mãos dadas com a
pedra.

Com a paciência da pedra,
o homem dorme
com o cansaço da pedra,
anoitece.

Com a sabedoria da pedra é que se multiplica
com o segredo da pedra é que se renova.

A vida inteira o homem ignora a pedra que o acompanha

a pedra que é a sua sombra
e que nele dorme

a pedra que é a sua memória
e que recebe o seu nome.

Arraial - Indaluz de Boa Vista

 

Arraial
(poderia ser cômica... mas é trágica)
A sanfona corria solta. O quentão jorrava na sua ardência de gengibre e canela; a pororoca estalava nos dentes; e o amendoim torrado...
Acolá, o lume tremia na volúpia de fêmea nova, lambia o céu salpicado de estrelas tremeluzentes e riscado por outras cadentes, que procuravam, noutro espaço, um arrimo para a sua fixação e levava atrás de si um caudal de ouro que descia, ereto, rumo a uma constelação nova e definitiva. Talvez que não fosse ainda a definitiva morada pois que peculiar a todos os que vivem de déu em déu, e não seria agora que aquelas estrelas sem lar, sem morada, haveriam de encontrar a parada de suas viagens planetárias nem a dulcificação dos seus devaneios. Talvez que não fosse ainda agora pois que a boêmia já se firmara na conduta daqueles fachos que, do espaço, riam zombeteiramente da escuridão inferior e, no espaço buscavam, nos braços de prazeres novos, a satisfação do seu agouro e a consumação do seu egoísmo por serem as únicas capazes de iluminar e escuridão, tendo até supremacia perante suas outras companheiras, que não podiam voar espaço abaixo num desprendimento total.
Dançava o lume sua dança sensual e nua com seu corpo ardente e liso de uma sensibilidade intocável.
Ardiam as brasas rubicundas como os olhos do homem que, encostado na barraca ou acocorado pelo terreiro, ou a brincar sozinho de não sei quê, penteava a grama com um pedaço de pau... rubicundos como os olhos da cachaça e do quentão.
E estalavam lançando no ar frio que vinha de longe, lá das paragens do inverno, estrelinhas que, ao lhe caírem nos braços nus ardiam e manchava de preto, exalando um cheiro de carne e cabelo assados, elevando, posteriormente, uma bolha de queimadura, pequena, mas queimadura; pequena, mas ardida; insignificante, mas doída; doída como o que dói sem ter aparência, como toda a dor dos pequenos cortes...
As bandeirolas de celofane dançavam nos seus cordões a dança do fogo num rebolado frenético e ruidoso quando a brisa que de longe vinha assoprava o seu hálito gelado... eram verdes, azuis, vermelhas, amarelas, que douravam todas ao clarão do fogo que quase as lambia.
O arrasta-pé estava animado. Cada vez mais, engrossava a fileira de adeptos que, à sombra do chapéu de palha, gastava o salto da botina, e elevava no ar uma nuvem de poeira um pouco mais espessa que o fumo que ardia.
Um pouco mais para a direita da casa – também enfeitada e caiada especialmente para a festa –, caminhavam árvores de frutas, temerosas de se aproximarem para não serem devoradas pelo fogo que se avolumava num estrépito louco. Debaixo delas uma limpeza total, varrido que fora para melhor aconchegar os matutos sedentos de música, de quentão, de farra, enfim. Tinham os pés vestidos de longas meias brancas, tipo estudante, que ia-lhes além dos joelhos. Eram de cal pintadas para que embelezassem um pouco mais o recinto da festa, tanto como as pedras maiores e menores que nem rolavam, paradas que estavam a assistir os festejos.
Eu procurava entre a gente. Procurava como se deveras procurasse alguma coisa enquanto era trombado, pisado no pé pelas terríveis botinas de couro cru. Na minha investida dei de cara com o Rufino – homem forte, trabalhador, rude, inteligente – morador lá pelas bandas do sapezal, onde criava galinhas e ovelhas. Ele tinha gado leiteiro, e fornecia, a preço corrente, leite para toda a redondeza. Pelo menos uma vez por ano distribuía, gratuitamente, todo o produto da ordenha: era o dia de “sexta-feira santa” pois, segundo a crendice da região, quem vendesse leite nesse dia estaria correndo o risco de não ter mais leite durante todo o ano, ou tê-lo sempre cheio de sangue como se a vaca houvera acabado de parir. Naturalmente, Rufino não queria correr um risco desses, ainda mais que, se tal acontecesse, a fama correria o mundo e todos ficariam sabendo da sua sovinice. Não, Rufino não era sovina. Nem tanto pela dádiva leiteira – como a podemos chamar –, quanto por suas costumeiras visitas àqueles mais necessitados para quem tinha sempre um riso largo e algum donativo...
Pelas festas de São Sebastião, que na vila ocorrem sempre em janeiro, era sempre festeiro e o maior doador de prendas: eram novilhos de cinco contos de réis, galinhas, cerdos medrados; enfim, era também pregão.
De sol a sol estava sempre a cuidar dos seus afazeres, sua única diversão. Procurasse-o no reparo da divisa, a consertar a bica do moinho, a plantar arbustos ao redor do açude e sempre o encontrava, sempre na labuta diária e incansável. Nem bem amanhecia, encilhava o cavalo e seguia para o campo, armas às costas, ou seja, enxada, foice, pregos, martelo, machado, arestas e até alguns pedaços de arame farpado. Quando não estivesse no tratamento da bicheira dos animais com seu medicamento vital, composto de pó de fumo e azeite de mamona. “Um santo remédio! – dizia – não há berne que aguente!...”
Um leão o homem. A queda do sol levava-o à casa, não por cansaço pois se o tinha não o manifestava, mas devido à escuridão que o impedia de acertar o chão fora da planta. Desde a noite em que quis emendar com o dia e levou uma dentada ao colocar unguento nos olhos do cão pensando estar colocando num berne nas proximidades, nunca mais trabalhou de noite. Não por preguiça nem por o cão ser bravo pois não era...
Pois bem. Rufino pisou-me no pé e dei de cara com ele, que tinha nas mãos uma cuia de quentão que, ao nosso tranco, movimentou-se de inopino aí dentro e queimou os dedos de Rufino, que trocou de mão a cuia lambrecada, e chupou os dedos queimados. Exalava um cheiro delicioso. A canela tem seus efeitos extraordinários tanto quanto o gengibre. No sertão não há quem não cure resfriado com canela ou gengibre: chá quente que requer muito cuidado, muito repouso, muito resguardo depois da sua aplicação. Conheço mais de um que tem o pescoço torto devido a uma friagem qualquer apanhada em seguida a uma talagada desse chá.
O vapor erguia-se da cuia em proporções menores que a fumaça da fogueira, e desenhava um traço bonito ar acima, um rastro branco como um cometa ascendente.
Rufino sorveu um gole e estendeu-me a cuia que eu mal via. Falou de tanta coisa de que eu nem me dei conta, perdidos que tinha os olhos e o pensamento no povo.
O som estridente da sanfona enchia o ar de notas límpidas, às vezes desafinadas e rústicas, mas quem se importava com isso? Decerto alguém se aborrecesse se lhe doessem as pernas, mas com a afinação ou não, do instrumento... claro que o sanfoneiro não podia cansar-se. Tinha de tocar até quando não restasse um só homem de pé. Há quem diga que ao final de cada festa, quem pagava todas as bebidas era o sanfoneiro, com o intuito de quedar com os cavalheiros que, sem forças, não tiravam mais as damas... talvez uma lenda a mais. O certo, todavia, é que sempre o sanfoneiro ria ao ver os homens escornados pelos cantos.
Lembra-me um caso único em que o sanfoneiro teve de lançar mão de outro expediente para parar de tocar. Dançava um único casal, o Nenê de Mané Bento com Mariazinha de João Leitão, assim chamado pelos roncos da dava na hora da sesta. Contam as más línguas que dona Joaquina não dorme mais com ele, devido aos roncos que ele bufa que não a deixam dormir, cansada que sempre se encontra, pela labuta com a casa enorme – de fazenda –, com tanto cômodo para limpar, tanta louça pra lavar e a comida que não é outra a fazer para todos os roceiros.
Mariazinha, de filhos, a única fêmea, vistosa como não sei quê. Olhos saltitantes, vivos como os de uma águia, a quem não faltava um só detalhe. Voz melodiosa, cabelos soltos, cor de madrugada quando a noite quase se despede do dia; pés pequenos e lisos, seios trêmulos e eretos. A fala solta como a língua dos verdes pássaros nos ocos das queimadas, andar elegante de garça pantaneira; pescoço esguio, ereto, cintura fina de pilão. Seus olhos carregados de malícia têm a sinuosidade picante, capaz de lançar por terra um homem afeito à humildade. Quando ela olha e fala, uma vibração estranha emana do seu corpo inteiro e seus olhos expelem como que um raio estonteante capaz de esfriar a espinha. Não por ser mau, mas por ser extremamente sensual e malicioso.
Mariazinha tem ascendência sobre os pais inobstante a gravidade desses. Ela traz da capital ideias novas que auxiliam-nos na resolução de problemas de longa data matutados. Os irmãos obedecem-na cegamente e sentem-se envaidecidos por ela ser tão bonita, alegre, falante... há quem fale mal dela, dizendo que sua alegria não passa de regateirice e que sua espontaneidade nada mais é que pouca vergonha, que na capital ela pinta e borda nas horas de folga da escola e até na escola. Não acredito nessas conversas de nenhuma maneira. Apenas me lembro dela do tempo em que era menininha e que já gostava de estar sempre brincando onde brincassem os meninos, sempre a mostrar as pernas, a assentar-se “sem modos”, conforme dizia minha velha mãe. Qualquer lugar servia para ela levantar as saias, baixar as ceroulas e urinar. Lembro-me até de uma vez em que ela abaixou-se mostrando-me a popa nua e branca. É verdade que foi sem querer, ou quem sabe marotamente? Eu nunca o soube.
Daí, foi à capital estudar.
Sempre que vinha a Brejo Seco, trazia o corpo menos vestido. Não posso esquecer-me da vez que a vi com os vestidos a roçarem o meio das pernas, completamente insólito. As moçoilas de Brejo Seco usavam ainda os vestidos pelos tornozelos. Não. Não acredito no que falam dela, ou será...
Pois ela dançava com Nenê do Mané Bento – é o que eu dizia –, e a dança ia que não acabava mais. O sanfoneiro tocava, repicava, desafinava propositadamente, e o par, incansável, trotava. Não paravam para ao quentão pois que nenhum deles bebia. O mancebo apertava voluptuosamente a mão de Mariazinha, e sua direita acercava-se da cintura dela de uma maneira que ela bem gostava. Ia a noite e não paravam. Foi quando o sanfoneiro se deu conta e começou, ele próprio, a beber, beber até que seus dedos não mais puderam dedilhar os botões da gaita. Só aí parou, ante os aplausos da plateia que não parava de gritar. Há quem diga que enquanto o pessoal aplaudia, Nenê e Mariazinha resvalaram para o fundo da casa acobertados pela noite, sumiram no quintal e só apareceram algum tempo depois com a cara mais lambida do mundo... e cada um por um lado. Outra mentira... mas vi a cara do Nenê toda borrada de batom e de pó de arroz... a única pessoa que usava batom por ali era Mariazinha...
Tomei um gole do quentão que Rufino me estendeu e o senti a queimar-me a goela. Pareceu-me ter engolido uma brasa da fogueira que ardia com seu hálito do inferno. Não que a bebida estivesse ruim ou mal feita, a verdade é que engoli por buracos errados, tão absorto estava a perscrutar os arredores em busca de não sei quê... senti toda a ardência da canela – que me arde ainda hoje –, e um esgasgo terrível acometeu-me. Foi necessário um tapa forte do Rufino dado sobre o meu pulmão, para que esguichasse o que me entrou por canais incompetentes. Os olhos marejaram-me febris, como de luto; praguejei, lancei alguns impropérios e deixei Rufino sem mais nem menos, com a desculpa de ir buscar água para resfriar-me a garganta.
A sanfona não parava de tocar.
O alarido do povo a dançar em volta da fogueira, ou a dizer troças, ensurdecia. O anel passava de mão em mão, as prendas saíam aos mais sortudos quando completavam suas cartelas.
As meninas, soltas ao redor do fogo, olhavam desconfiadas para os seus prediletos, que também não tinham coragem de se declarar, e ficavam naquele namoro à distancia, adornado e tornado público aos risinhos que se perdiam no canto das bocas.
Foguetes eram soltos ao ar e subiam deixando atrás um rabo de fogo que mais parecia as estrelas peregrinas que, às vezes, também voavam, como viram já, no início desta festa. Muitos que do espaço distante vislumbrassem os foguetes em sua alçada, decerto haveriam de pensar ser um astro perdido a velejar em busca de fixação, vendo perdidas as intenções à explosão que, quase sempre, seguia à ascensão da pirotecnia. Muitos habitantes de mundos outros, dispersos no além, quem sabe, nas suas observações, não anotassem nossos simples fenômenos da pólvora como explosões celestes de mundos destroçados pelos impactos dos vácuos planetários.
Balões subiam, subiam e incendiavam, distante, pastos inteiros, e matavam as cobras que dormiam... as rodinhas eram soltas e subiam no seu incêndio circular até aonde o impulso as levava, quando três explosões detonavam, quase inaudíveis, tamanha era a altura; sabia-se mais delas pela luminosidade, três rompimentos, que brilhavam repentinamente para desaparecer em seguida. Busca-pés soltos pela molecada, e até mesmo pelos adultos, vez por outra, riscavam o terreiro com suas espadas de fogo, e imiscuíam-se, não raro, por sob as saias das donzelas que, esbaforidas, levantavam-nas em um gesto inopinado, sob os olhares masculinos que ficavam à espreita desses desastres.
Havia aquelas que se envergonhavam e se punham rubras como a aurora nevoenta, só porque num desses acidentes mostravam um pouco da perna. Essas iam embora e ficavam sem aparecer na rua por longo tempo, até que a rapaziada se esquecesse do evento... e havia aquelas outras que quando ouviam os primeiros estrondos dos rojões que dasabrochavam, sentavam-se de pernas fechadas e saias espremidas entre elas na tentativa de protegerem-se de possíveis escândalos.
Isto faz-me lembrar a Ritinha do velho Fonseca – que, àquele tempo, nem era velho –, homem sisudo e honesto que não dera sorte com a família. Casara-se e vivia bem com dona Emília até que o terceiro parto levou-a para o lugar de onde não se volta. Uma linda menina foi o fruto desse malfadado episódio.
Nunca vira homem mais triste que o velho Fonseca. Ele chorava quando batia a enxada no chão, quando via o vazio da cama onde dona Emília dormira por tantos anos. Definhava-se o pobre do homem, e não tardou que se casasse novamente. Afinal, não poderia ficar só, para sempre.
Sempre um trabalhador honesto. Não merecia a sina que o vergava. Não merecia a família que tinha; merecia algo melhor.
Juanita, filha de tropeiros, que moravam em Vila Pequena, não muito distante de Brejo Seco, foi sua segunda esposa. Conheceram-se nos festejos de São Sebastião quando ali viera em romaria. Refestelada e orgulhosa, não tardou em deixar o velho Fonseca com mais duas filhas, e fugiu com um soldado que fora removido. Foi melhor assim, que havia tempos levava um caso com ele, sem que seu Fonseca soubesse. Melhor para o soldado pois se o velho Fonseca tomasse ciência do fato, não gostaria eu de estar nem na pele do soldado nem na de Juanita.
Dizem que Juanita, agora, está pela vida e o soldado, morto, perdida a vida quando de uma confusão que fora apartar num bordel. Melhor para o velho Fonseca que não teve de matá-lo e sujar suas mãos trabalhadoras.
Isso já faz tempo. De lá para cá o velho Fonseca limitou-se a criar os filhos na medida do possível, trabalhando ao lado dos filhos homens, como ele, trabalhadores.
As duas filhas de Juanita não eram flor que se cheirasse. Eram mais moças que Ritinha e já se perderam pela vida. Contam que Netinha juntou os panos com o domador de um circo que certa vez passou por Brejo Seco. Outros, dizem que ela fugiu com um rapazola irresponsável que passou a viver às suas expensas. Ela trabalha nas noites da capital para entregar, de manhã, a verba ao seu amante que, em troca, dá-lhe algum carinho e uns empurrões. Pobre infeliz! Tinha tudo em Brejo Seco: o amor do pai e dos irmãos sisudos e retos, a simpatia de Celinho de João do Açougue, também honesto e trabalhador – puxara ao pai...
Rosa, a outra irmã, era uma flor de menina. Tantas paixões suscitou que acabou por ajuntar-se com Joca Carroceiro, que depois de emprenhá-la, abandonou-a na rua da amargura e sumiu, sabe-se lá pra onde. Mas ela não perdeu a beleza por ter tido o filho, que morreu ao nascer; mas perdeu a dignidade, a honradez, a retidão. Há os que dizem que foi ela a influenciar Ritinha, um pouco mais velha que ela, nas festas de São Sebastião.
Havia, sim – eu dizia –, aquelas pudorosas que, por levantarem as saias, atendendo a um imperativo de defesa contra o fogo que, certamente, as comeria até aos ossos, não se mostravam por longo tempo... e havia a Ritinha, sapeca, assanhada, assaz maliciosa que elevava o vestido até quase à cabeça sem nenhuma cerimônia, ao ouvir o estalar do busca-pé. Natural a atitude, afinal, todas se defendiam como podiam: correndo, gritando, saltando por sobre tachos de quentão... até me lembro de Dorinha de Chica Costureira, pudorenta e tímida que, certa vez, ao correr de um busca-pé, caiu ruidosamente dentro de um tacho de quentão fervente e precisou sair daí completamente nua nas partes inferiores, e diretamente para o João da farmácia.
Defendiam-se como podiam. Às vezes, chegavam a ser vítimas de um mal e de uma exposição maiores, na tentativa de resguardar seus corpos de virgens até quando o tempo, por si só, se encarregasse de sorver-lhes da intimidade e transformasse todas elas em donas de casa abnegadas e corretas. Natural o gesto... não... mas Ritinha não levantava o vestido para defender-se de nada. Fazia-o dando gritinhos de histerismo com se estivesse sendo acometida de estranho prurido. Elevava, acima do umbigo, as saias rodadas e deixava à mostra a sua calcinha rendada, muito sensual. Eu já vira, em minha casa, as calçolas da minha mãe e das minhas irmãs quando, inadvertidamente, não as tiravam do varal escondido atrás da casa, antes que eu chegasse. Eram enormes. Não eram sensuais como as que Ritinha exibia nos folguedos da festa.
No dia seguinte, ela saía normalmente à rua. Ia à bica, à venda. Passava pelas calçadas espelhando um ar de grandeza e cinismo... balançava os seios empinados, altivos como ela mesma, sabedores da potência da libido que continham.
O velho Fonseca, cansado de tudo, rumou para Vila Pequena e nunca mais apareceu em Brejo Seco. Dizem que morreu de desgosto.
Deveras, fui buscar água. Diabos, fico tergiversando e quase faço o leitor esquecer-se do fio da minha estória, mas vamos lá. Deveras, fui buscar água e tomei um pouco para refrescar a garganta queimada pelo quentão, pela canela e pelo gengibre. A água desceu-me refrescante pela garganta febril, mas não baixou a febre da minha procura. Mas que buscava eu, afinal?
Buscava a pequena Nicete de Duílio Casassanta, menina acanhada e leda. Não trabalhava nos afazeres da casa, impedida por sua mãe, cujas mãos não conheciam a preguiça. Buscava-a eu entre as meninas que dançavam ao redor do fogo, que quase lambia suas pernas com a sua língua de lume. Todavia, era natural não encontrá-la ali pois que ela era por demais acanhada para estar à mostra ou dançando. Nunca ouvi alguém dizer que vira a ponta do seu tornozelo pois que ela se vestia impecavelmente, naturalmente, para mim, para a data em que, definitivamente no uníssemos... jamais um moçoilo de Brejo Seco ouvira sua voz macia e terna falar-lhe ao ouvido pois até mesmo comigo ela era um tanto fechada... lembro-me ter pegado, furtivamente, sua mão, uma única vez, pela festa de São Sebastião. Eu morria de amores por ela, que correspondia amplamente ao meu sentimento. Não posso esquecer seu talhe...
Em vão procurei por ela na festa. Decerto não saíra, quem sabe se não estava acometida de uma gripe forte, ou de uma enxaqueca? Melhor seria que eu também fosse embora; não era justo que ficasse a me esbaldar na alegria enquanto Nicete ardia em febre em sua casa. Já a vira, certa vez, doente. Pobrezinha!, suava e gemia estendida na cama macia de cetim na completa ardência da febre que a subjugava. Não se alimentava; apenas bebia água como se sorvesse uma bebida inebriante. Emagrecera tanto que o velho João da farmácia teve de lançar mão de todos os seus conhecimentos de medicina que, afinal, não eram muitos, de todas as suas intimidades com as mezinhas, e teve de fazer poções, as mais diversas... mas não conseguiu devolver à adorada Nicete as carnes perdidas.
Não. Não era justo eu ficar na festa. Iria embora!
De que me adiantavam os ruídos do povaréu, o cheiro do quentão, os odores da cachaça, os parcos tornozelos que vez por outra apareciam?... não. Iria embora. Melhor seria até pois não me esquentaria ao lume ardente, a tomar sereno na cabeça e correndo o risco de contrair um resfriado. Como não me embebedaria, nem ficava sujeito a cair na fogueira acesa. Iria embora. Dormir e sonhar com Nicete Casassanta.
Contente pela minha fidelidade procurei esquecer as notas da sanfona, os anéis que corriam de mão em mão, as cordas que os moços pulavam alegremente... procurei esquecer a pipoca alva de noiva e, mastigando uma pororoca, tomei a decisão que não podia mesmo ser outra.
Abnegado bati em retirada. Não percebi um rojão que caíra próximo de mim e estourou de repente, ante o riso de todos que estavam nas imediações e viram meu desconcerto, e até de outros que riram atrás sem saber porque o faziam. Tremendo foi o salto que dei, aturdido e ferido os brios ante o ridículo da situação.
Sim. Iria embora! O coração saltava-me, aturdido que eu me encontrava.
Ao longe, ainda ouvia a sanfona e o “balanceia” do animador da festa. Caminhava, já na escuridão total de estradinha solitária rumo à minha casa, a alma lavada pela digna atitude que eu tomara.
O clarão do fogo já ficara distante, a algazarra já não se ouvia. Apenas os grilos e sus cri-cris, o canto da alma-de-gato, e, ao longe, bem ao longe, o uivo de algum guará.
Tudo era quase silêncio. Além dos ruídos descritos, podiam-se ouvir as batidas do coração no meu peito sufocado de espera e de paixão. Como esperei pela Nicete! Pobrezinha, adoecera, certamente.
Ia a remoer os pensamentos quando ouvi, na orla da estrada e no meio da escuridão e da vegetação de meia altura, um gemido lânguido, comprido, ab-rupto e manso, e um sussurrar imperceptível de pecado. A curiosidade fez-me parar. Decerto alguma desavergonhada saíra da festa e foi estar nos braços do seu predileto nas escondidas da noite e nas sombras do mato. Que desavergonhada!...
Decidi-me por entrar nas ramagens e surpreender o casal, conhecê-lo e dizer-lhe umas poucas e boas.
Ao iniciar a entrada ouvi uma voz cansada, abafada, de mulher, murmurar “meu deus, vem gente!...” e, em seguida desembrenharem-se, os dois patifes, mato adentro sem que eu os visse. Melhor assim. Na certa estavam aos beijos e abraços... resolvi sair do mato porém percebi uma peça branca no chão; certamente os amantes a deixaram cair na fuga. Aproximei-me. Vi um pé de sapato comum como qualquer outro e... deus meu!, um lenço que eu dera à Nicete...
Campo Grande-MS, 30.08.1982 – 20:53