quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fevereiro - Geraldo Roberto da Silva


 Geraldo Roberto da Silva é artista plástico, diretor de teatro, professor universitário. Vamos conhecer sua faceta de escritor. Trata-se de um conto: Fevereiro - que constará de um livro a ser lançado em breve.


FEVEREIRO





26 de fevereiro (de manhã):
Pouca gente no enterro. Quem, porventura, sentiu a falta de Rosângela compreendeu. Deu razão.
No céu – azul sem nuvens – daquela manhã no cemitério, uma gaivota sem bússola fez voltas e voltas, sem saber que rumo tomar. Decidiu-se pelo norte. Pelos seus olhos, vendo de cima, a estrada negra e longa de asfalto parecia um novelo desenrolando-se, sem ter fim. É provável que a extensão do alcance de sua vista pudesse perceber, lá de cima, em algum instante do seu caminho, um carro Brasília verde, indo também naquela direção. Norte.


25 de fevereiro (9 horas da manhã):
Quando Vicente Menezes torceu a direção para a direita, pisou no acelerador e deixou que o ônibus esmagasse a multidão na calçada, deve ter se sentido como um homem que pisava, revoltado, as flores delicadas de um canteiro. Quem pudesse contar diria que, minutos antes, parado no sinal, ele olhava para a rua em frente, com os olhos perdidos de alguém que estivesse em transe. Quem pudesse saber diria que ele fechou os olhos e arremeteu o veículo, com o mesmo estado de embriaguez mental com que um louco gira o tambor e aciona a esmo, o gatilho numa roleta russa. Outros talvez dissessem que ele o fez gritando e com os olhos esbugalhados de um possuído. Seriam versões. Meras versões de um fato. O que se lembra, e isso era certo, é que aquela manhã era uma das mais quentes de fevereiro.
Os vidros da loja não foram suficientes para deter a máquina desgovernada que irrompeu calçada acima, debaixo de gritos, espanto e terror. Metade do ônibus invadiu a loja. Entrou, sem pedir licença, derrubando  manequins, embaraçando-se nos panos e arrastando consigo um cheiro de corpos, de sangue e de pneu queimado.

A quilômetros dali, naquele dia, naquela hora, Rosângela Menezes acordou assustada do cochilo inquieto, no banco da frente da Brasília verde, ao lado de Élton, que dirigia em busca de um horizonte novo.
“O que foi?”, perguntou ele.
“Um sonho ruim.”, ela respondeu.
“A menina está agitada. Vê o que está acontecendo com ela”, disse ele, passando por cima de todas as miragens que evaporavam do asfalto negro e sem despregar os olhos da estrada interminável que tinha à sua frente. Fazia muito calor.
“Perdeu o bico.”, respondeu Rosângela. Acomodou-a melhor, procurando tapar seu rostinho com uma fralda, e tranqüilizou-se, quando ela fechou os olhos novamente e voltou a dormir.
“Tente dormir de novo. Ainda temos muito chão pela frente.” Élton falou para Rosângela, tentando ser gentil, mas sem esconder a irritação com o calor e com os buracos da estrada malcuidada.
“Não consigo, Tou agoniada!”, Rosângela respondeu acendendo um cigarro e deixando que seus olhos se perdessem na paisagem monótona de pastos e de vacas. No imenso céu azul em frente, uma única e volumosa nuvem em forma de caramujo lembrou-lhe dias esquecidos da infância, quando, para se distrair, adivinhava o que as formas das nuvens queriam representar.
Rosângela ligou o rádio do carro. Parou na estação preferida. O noticiário sucedeu uma música e trouxe a notícia. Entre detalhes confusos e a voz nervosa do repórter que cobria o fato, sobrou uma certeza: o ônibus era o 212. O ônibus de Vicente. Não dizia quem e quantos morreram. A notícia atingiu Rosângela como um coice de mula.

Élton foi compreensivo. Fez o retorno e o caminho de volta. Rosângela não enxergou mais nuvens, nem pastos verdes pontilhados de vacas. Chegaram no comecinho da noite. O telefonema que ela havia dado do posto da polícia rodoviária para uma vizinha da rua confirmara. Era Vicente. Não deu tempo à vizinha de falar se Vicente havia morrido.

Foram direto para a Santa Casa de Misericórdia. Élton ficou com a menina no carro e Rosângela foi enfrentar os corredores frios. Espremidos nos corredores, os parentes vítimas – as flores esmagadas do canteiro – choravam desesperados, tentando inutilmente interpretar os azares do destino. Uma enfermeira deu a notícia já sabida: “Vicente morto.”. Foi ao prédio contíguo, o IML. Outra enfermeira lhe entregou o relógio e a carteira com os documentos. Amassado, entre a sua foto e a da filha, o bilhete que ela deixara, antes de ir embora com Élton. Não lhe deixaram ver o corpo naquele momento. Alguém a ajudou a se sentar num banco e abriu as janelas para que ela respirasse ar puro. Um cheiro de madressilva que o vento trouxe da rua ajudou-a a se recompor do choque.
Rosângela respirou fundo e lembrou uma tarde distante, num domingo, no parque, quando Vicente lhe comprou flores e andaram os dois, no lago, de pedalinho, como duas crianças. Lembrou também seu choro de homem derrotado numa noite de outubro, quando vendeu a casa para pagar uma dívida de jogo. Lembrou-se de quando beber deixou de ser ocasional para ele, para ser uma fuga do desespero. Lembrou-se do primeiro tapa...
Então chorou forte. Chorou um choro tão forte e de tanta revolta, porque descobria quão pouco espessas eram as cicatrizes que cobrem as feridas da alma. Pensou no marido morto e não conseguiu evitar, para si, uma culpa indireta por tantas vidas decepadas no desastre.
Um cheiro forte de formol evadiu-se pelas frestas das portas. Sentiu uma leve tontura. Quis ir embora, para longe. Teve forças ainda para localizar no corredor o cunhado Walmir, que ouviu, compreensivo, pedir que ele tomasse as providências para o enterro. Walmir, com a alma tonta pela perda do irmão, não teve forças nem argumentos para cobrar qualquer coisa da cunhada.

Quando Rosângela voltou ao carro, a menina estava acordada e brincava com Élton no jardim. Tomou-a nos braços e pediu a Élton que as levasse embora, para onde ele escolhesse, desde que fosse bem longe.

Recomeçaram de novo a viagem. Élton retomou a mesma estrada, com o mesmo calor das horas dos dias. A noite era tão quente, quanto.
Rosângela sentiu, que, devagar, a opressão desafogava-se do seu peito, e passou a mostrar à filha os vaga-lumes que acendiam luzinhas nas sombras da noite. Aos poucos, preguiçosa, uma lua redonda e gigante, arrastando seu passo lento no céu, abriu uma luz de cinema que clareou toda a estrada e pareceu lavar o imenso tapete de asfalto que conduzia os três para uma vida nova.

26 de fevereiro (comecinho da tarde)
A Brasília verde, insistente e corajosa, engolindo o asfalto da estrada. Continua o calor forte de fevereiro. Nenhuma nuvem no céu, nenhuma esperança de chuva. Da janela do carro, no colo da mãe, encantada, uma garotinha olha no céu uma gaivota branca, única presença estranha contaminando aquele azul.


GERALDO ROBERTO DA SILVA
Artista plástico e animador cultural
tel: 05392414491
e-mail: geraldoroberto@gmail.com

Martha Tavares Pezzini 
Sobre Livros e Autores 
marthatavaresspf.blogspot.com

 


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