O escritor mineiro, Luis Ruffato fez o discurso de abertura da Feira do Livro de Frankfurt onde o Brasil é mais uma vez homenageado. A repercusão de sua fala está causando o maior reboliço! Eu aplaudi. Chega de ir lá fora e falar que tudo aqui é maravilhoso. Precisam saber o que passamos, apesar da nossa alegria. Que não podíamos sediar a Copa. Que um escritor como o Luis Fernando Veríssimo declarou não poder viver só dos livros e a lista vai longe...
MTP
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"O que significa ser escritor num país situado na periferia do
mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma
metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de
habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território
chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as
mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é
uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse,
o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa
subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade
que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos
aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre
agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que
exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da
indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que
existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em
condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em
favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância
nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não
teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no
entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é
mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou
africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e
negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século 19, cinco milhões de africanos negros foram
aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a
escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições
dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos
afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são
vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos,
jornalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas
primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de
qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na
engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos
de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do
país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos,
sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de
todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só
funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância
emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de
ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe
também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim
acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo.
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100
mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três
vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são
os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados,
protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas
os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de
narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior
número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45
mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil
denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto
em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são
sempre subestimados.
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual
revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais
importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de
participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o
maior número de ataques homofóbicos da cidade.
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população
carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente
por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais
eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos
lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da
população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos
funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de
ler e interpretar os textos mais simples.
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca
registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser
mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2
bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo
federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto,
continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país
inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim
concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia -
são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais
extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a
estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o
fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a
expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de
pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância
da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as
bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades
públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do
nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia,
educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, mas privilégios de
alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não
pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a
necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de
300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de
transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos
acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas,
florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável,
de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos
direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais
bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos
naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de
crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório,
de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata,
por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro
lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região
situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase
inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a
adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da
literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto,
eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário
têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado
pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode
alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas,
então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado
apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é
estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento
mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas
ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o
homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos
a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos
negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo,
para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de
utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser
unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."
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