TIRADENTES VIVE
O
Brasil celebra os 222 anos do enforcamento do Alferes Joaquim José
da Silva Xavier, o Tiradentes (Rio de Janeiro, RJ, 21-IV-1792),
considerado pelas autoridades da época como o principal envolvido no
movimento político denominado Inconfidência Mineira para livrar o País
domínio colonial português.
Em seguida, o trecho final da narrativa Eu, Tiradentes, de Paschoal Motta, como
parte das comemorações do 21 de Abril em homenagem ao Protomártir da
Independência do Brasil e Patrono Cívico da Nação Brasileira, conforme a
Lei 4897, de 1965.
Joaquim José nasceu em 1746,
na Fazenda do Pombal, perto do Arraial de Santa Rita do Rio Abaixo,
entre a Vila de São José, atual Cidade de Tiradentes, e São João
del-Rei.
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"Bate
completa a manhã deste vinte e um de abril de mil, setecentos e noventa
e dois, de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra similhante nunca admiro
repetida. A mais encantadora de boniteza, lindíssima, com avermelhado
Sol no azul e branco do firmamento, meu derradeiro dia entre viventes.
Única esperança: o enforcamento de minha pessoa, o banimento dos
companheiros confederados, que for pela Pátria, tudo vira em despertar
muito brilhante em fogo, luz. Só nesta vontade, comprometimento, ofereço
esta vida, em sã, tranquila consciência, apartado do medo da fatal hora
do baraço no pescoço, que instinto em si obriga a tal. Bem se arranjem
eles e regressem, vencidos os dez anos do degredo em distancíssimas
partes fora do Brasil.
Aperto
o peito com estas mãos há tanto tempo atadas em ferros; pesado,
abençoado grilhão ajustado na garganta, de quase impedir soltar voz,
alimentar, deglutir simples cuspe. De igual feição, aprendi amar a eles,
pelo carinho da constante companhia, mesmo dolorida, incomodante no
corpo, tilintava correntes com distração, elas, um cilício, untadas de
suor, meu desespero, minha solidão. Com ditos ferros, consegui amena
cantiga no ouvido, noite, noite, no recurso de ainda espaventar
ratazana, eu na vigília, sem dormir direito, espichando cada hora, que
queria breve. Não lamento, somente relato. Acabo amando em demasia
aquilo de minha perdição, meu calvário. Pouco sobra de espaço de
tempo em maior declaração. Já aparece em seguida o barbeiro, para tosar
cabelo, barba, mais alguém capaz no preparo de minha pessoa, alma,
tirante Vossas Mercês já aqui. Nem derrota, nem derradeira vira essa
jornada unicamente minha; para vida, para morte, sempre traço
desassossegado caminho no rumo da aventura, no almejo do bem pessoal, do
próximo, maneira de existir, em desde menino.
Onde
anda a alma de minha mãe, de meu pai, dos quais mal diviso retratação
na saudade; meu pai Domingos, minha mãe, Antônia da Encarnação; meu
irmão mais velho, xará de meu pai; minha irmã Maria Vitória, meu irmão
Antônio, meu irmão José, minha irmã Eufrásia, minha airmãzinha caçula,
xará de minha mãe? Em que partes residem? Para onde fugiram todos pela
maldição de serem meus afins? Deles, jamais notícia chegou, depois da
prisão. Antônia Maria, queridíssima companheira, mãe de minha pequena
Joaquina? Que delas prepara a vida? Onde todos eles? Fugidos,
escorraçados por perseguição em causa do mesmo sangue nestas veias? De
todos, assaz necessitada: a menina Joaquina, com nem seis anos de idade.
Imagino minha filha, menininha, pela mão da mãe se acoitando do
medo, em Villa Rica, indo em fuga, assustadinhas, no recurso de
sobrevivência, que nem teto agora dispõem, modo rebuçar de chuva, frio,
elas também amaldiçoadas.
A malha da liberdade pode aparecer como desfeita, mas logo haverá recomposta.
Em antes de bater meio-dia, assistirei já em desconhecida paragem.
Medo
qualquer entra neste coração. Por pura felicidade, providencial, divino
destino, este corpo, esquartejado, falará, não como escarmento
projetado pelas autoridades, e sim provocação para o povo nacional
proceder liberto de despotismo. Por divina Providência, determina a
sentença permanecer espetada esta cabeça em alto, visível poste em praça
pública de Villa Rica, já antes expostos pedaços deste corpo pelos
caminhos. Acendo, mudo, assim fé no estabelecimento da nação brasileira.
Quente
viaja o Sol, já alto. Derrubam casa de morada da Maria Antônia, da
pequena Joaquina; salgam terreno dela arrasado nem querendo as
autoridades conhecer onde homiziam suas inválidas pessoas.
Amanhecem
bem dormidos os companheiros, aliviados do pesado terror de morte na
forca. De outros, escasso tempo disponível não permitiu referição, em
cada seu particular, ação na inconfidência; bastante saudoso no coração,
despeço-me. A eles, um por um; a cada qual deixo humilde dote de
amizade, com súplica de perdão pelo desatino provocado em sua
existência, indo todos em degredo para distantes partes, despojados de
teres, haveres, queridos familiares, amigos.
Valeu;
vale vida, mesmo sobrevindo inesperado desacerto. Vale não quietar
existência no seu particular bem-bom; vale sair, gritar na inteira força
da voz, enquanto da rua bate no ouvido murmúrio de opressão; enquanto
da parede da meia-água do vizinho, divide choro renitente duma criança
pequena na fome, aflita mãe, desiludido pai. Valeu batalha; vale ansiar
soltura enquanto entra janela adentro, da praça, berro dum escravo
debaixo de bacalhau de couro cru, dobrado, preso num vira-mundo. Urge
convergir para vera amizade: amor; dela, dele, não encontra um
escapatória, ninguém, um dia. Vossas Mercês haveriam repetição do que
pratiquei, idealizei, de frente, como andei, desarmado de mau
sentimento, sonhando apenas felicidade, alegria no rosto, no coração.
Qualquer, em sã consciência, praticava igual comigo, assistindo vexação
do povo, no aproveito de uns poucos. Este o destino: não acaba uma vida
com a morte, nem fogo queima uma ideia; nenhum ferro segura a liberdade.
Aí
envém o carrasco Capitania no preparo de meu corpo para enforcamento, e
a roupa trago esfarrapada, crescido cabelo, longa barba. Adeus. Eu,
Tiradentes beijo a mão de Vossas Mercês e a do carrasco..."
(de Eu, Tiradentes, Editora Lê, 3a. edição esgotada, BH, 1992)
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