José Rezende Jr, escritor com um currículo invejável, vencedor do JABUTI 2010, na categoria Contos e Crônicas. Primo do meu querido sobrinho (casado com minha sobrinha Fernanda), Henrique Antônio Carvalho Braga, insigne professor da UFJF. Estará no debate da FLIBH, dia 26, sexta feira, às 8,30 horas. Não deixem de ler seus mini contos! Vocês não terão vontade de parar! Estarei lá, com certeza!
Martha
José Rezende Jr.
Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor), de
José Rezende Jr., mereceu o Jabuti 2010, na Categoria Contos e
Crônicas. Considerado o mais prestigioso prêmio literário nacional, o
Jabuti costuma, como se sabe, representar uma distinção, sugerindo, na
pior das hipóteses, um olhar mais atento aos contemplados. O jornalista
José Rezende Jr. estreou na ficção em 2005, com o livro
A mulher-gorila e outros demônios,
também
publicado pela editora 7Letras. Em sua página na internet
(wwww.joserezendejr.jor.br), o autor traça um perfil de si mesmo, que se
fecha com a informação:
Devoto de Guimarães Rosa, José Rezende Jr. foi buscar num dos versículos de Grande sertão: veredas
o estímulo que faltava para mudar de vida depois de tanto tempo de
relacionamento passional com o jornalismo impresso: “O mais importante e
bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda
não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou
desafinam. Verdade maior”.
O livro premiado em 2010, organizado em torno da temática amorosa
enunciada no subtítulo (temática, aliás, aqui dotada de conotações
peculiares), traz uma epígrafe extraída das
estórias do mesmo
Guimarães Rosa: “O amor? Pássaro que põe ovos de ferro”. No livro de
estréia, duas epígrafes, ainda de Rosa: (1) “O senhor sabe o que o
silêncio é? É a gente mesmo, demais”; e (2) “Ouvi minhas veias”.
Se o leitor desta resenha vislumbrasse por aí algum excesso de
Guimarães, meu primeiro gesto seria o de contestá-lo. Não, meu caro, eu
diria, escrever literatura não é uma atividade solitária. Como sugerem,
aliás, as incursões borgianas por bibliotecas constituídas como
labirintos. Escrever é sempre perambular em uma biblioteca, povoada por
fantasmas evocativos de outros fantasmas, por sua vez alusivos a outros e
outros e outros, enfim. Que um livro module sua voz caminhando por
sobre ombros os mais diversos não é fato, portanto, que surpreenda ou
emocione.
A
devoção a Rosa, de resto, não obstrui ou contamina o forte impacto recebido já na leitura da primeira
estória do livro,
Eu morrendo e você pintando as unhas de vermelho.
Como anuncia a orelha: “É forte, profundamente triste, mas impecável”.
Iniciando-se em letra minúscula e organizado em um parágrafo que se
fecha com o único ponto do texto, o conto pode fazer pensar em um
suspiro que se prolonga à busca de uma permanência já inexeqüível,
desdobrando uma certa voluptuosidade mórbida disseminada pelas palavras
que o constituem. O
amor cuja trajetória o texto estrangula,
restringindo-a a um momento agônico devolve-nos à epígrafe: “O amor?
Pássaro que põe ovos de ferro”.
Erotismo
O sentido de
amor distende-se ainda mais no conto que
empresta o título ao livro e que flagra com intensidade ímpar as
perturbações que a alteridade impõe ao que pudesse ser tomado como
identidade. Enfim, algo que remete ao campo semântico mais usual da palavra amor, em que o olhar do outro
corrige, ou
reveste de sublime o olhar que o sujeito se permite depositar sobre si
próprio. Como no lirismo bem dosado da estória de encontro súbito, de
Desastres marítimos, em que
Amor é,
ainda, possibilidade de existência e via de acesso a algum tipo de
“salvação”. Como na difícil senilidade do amor e de seus atores, em
Senhor capitão. Como nas ousadas agressões incestuosamente sexualizadas de
Conto de horror. Como nas ambíguas relações comerciais do amor venal, ainda amor, em
Origami. Em todos os casos, o mesmo pássaro e seus ovos de ferro.
O erotismo que perpassa boa parte desses contos também merece alguma consideração. Notadamente
masculino (para
lançar mão de uma tipificação redutora, mas que talvez elucide a que me
refiro), parece referido a um universo com traços definidores que
sugerem o rústico, em alguns casos o rural ou um submundo urbano ou,
ainda, uma urbanidade interiorana. A pronunciada genitalidade se faz
acompanhar pela reincidência de um tipo de excitação erótica de intenso
apelo visual. A nudez feminina é oferecida com impacto e apelo, com
alguma crueza e, em alguns casos, uma urgência aguda que, não obstante,
permite o contato com outras urgências, de cunho nada físico:
Esgueiraram-se juntos, por tempo indeterminado, pelo corredor
comprido e escuro, até que ela abriu uma das portas e o puxou para
dentro e fechou a porta com o pé já descalço e o empurrou para a cama,
sem uma palavra. Despiu-se com a mesma pressa juvenil e na ordem inversa
de sempre: antes de tudo a calcinha, depois o vestido, por último o
sutiã, quase arrancando os colchetes. E nua, com a mesma urgência
juvenil, desafivelou, dele, o cinto, e baixou-lhe até o meio das pernas a
calça cor-de-viagem. E não houve beijos, nem abraços, nem tempo a ser
desperdiçado, como no tempo da construção da estrada. Glaura sentou-se
sobre ele e ele reconheceu cada um dos movimentos de Glaura, os quadris
ondulando à deriva, o ritmo dos cheiros e das respirações, a mesma
seqüência antiga dos gozos, o primeiro como se fosse calmaria
desesperada, o segundo e o terceiro emendados, quase um só e no entanto
dois, feito gozos siameses, e o último dolorosamente silencioso,
agônico, emoldurado por tremores febris. Seguiu os passos de Glaura
nesse último gozo, tímido e imóvel o quanto pôde, feito um espectador
reverente que contém os aplausos temendo interferir na atuação da
estrela até não ser mais suportável prosseguir assim, imóvel e
reverente, até o aplauso final em forma de jorro morno, até sentir-se
murcho como as flores velhas, pegajoso como o asfalto novo.
Visão turva
Sem que exatamente discorde do autor da orelha do livro (“o
livro se compõe de estórias de amor; mas não se engane: não é daquele
amor com letras maiúsculas, romântico, repleto de clichês que José
Rezende extrai sua literatura”), sublinharia que algumas imagens
recorrem no conjunto dos contos, configurando, também, uma certa
gramática amorosa:
corpos (femininos) que permanecem rígidos e vigorosos a despeito da
perda de viço de seus pares masculinos, sexo urgente e substitutivo, uma
representação
física do afeto, uma quase
imanência do amor que
submete deliciosamente
o sujeito masculino. O que, aliás, colabora de modo bastante coerente
com os traços constitutivos do conjunto do universo ficcional
configurado em alguns destes contos.
No entanto, quando nos aproximamos do final do livro, mais especificamente do conto final intitulado
Lá onde a noite é mais escura,
algo que até então não se discriminava muito bem começa a nos turvar a
visão. A narrativa é estruturada a partir de um narrador em primeira
pessoa, aparentemente um homem rústico, um habitante dos sertões que
dialoga, ao longo de todo o texto, com um interlocutor mais culto, uma
espécie de testemunha por meio da qual a experiência do vivido é
validada e/ou confirmada, possivelmente justificada. Esta terceira
pessoa, o interlocutor ao qual o narrador se dirige, é um padre com o
qual o narrador compartilha uma experiência algo sobrenatural, algo
indizível, de algum modo incognoscível. Veja-se o trecho:
Presta atenção: se o senhor pegar uma enxada, uma boa enxada, e
com braço forte, cavar num qualquer quintal, mas cavar bem fundo, e se
cavar igualmente na alma e no fundo do coração do morador, ah, o senhor
encontra coisas muito feias… Malvadezas, remorsos, desejos. Imundices.
Pra mim, O Interior não é povoado nem vila, é o de dentro do homem. O
que ele esconde de si próprio e até do padre. O senhor duvide que mesmo
assim eu afirmo: interior tem mais maldade que cidade grande.
Se o conjunto do livro impressiona por uma prosa vigorosa, de algum
modo surpreendente, sem dúvida autônoma e rica em sua capacidade de
gerar sentidos e criar dificuldades, o conto final assusta pela
flagrante (e frágil) emulação. O mestre de que o autor se diz devoto aí
se remexe, cadáver violado, algo caricatural, piorado, em frangalhos. O
conto parece arremedar um certo Guimarães. Assim formulado, o juízo
será, sem dúvida injusto e parcial. Talvez fosse mais justo dizer que a
narrativa que encerra o livro se equilibra perigosamente no fio tênue
que separa a servilidade do arremedo e a fatura trabalhosa de uma dicção
pessoal:
Lhe assusto com minha prosa? Sei que não, o senhor tem partes com
Deus, corpo e alma fechados… e o que conto é tudo bobajada de capiau
velho. Existe nada não. Só se o senhor acreditar. O senhor crê? Eu
creio. Por isso não durmo de noite. O senhor, se fosse eu, dormia? Se
soubesse, e visse, o que eu sei, e vi? Ah, se tivesse juízo não dormia.
Sei que o senhor não me dá razão, o senhor não pode, mas eu afirmo e
confirmo: nem tudo que há é obra de Deus. E o que não há, então?
De que o autor tenha fôlego e brio narrativo para ultrapassar o
impasse em que este conto, em particular, o situa, ninguém duvide. No
conto intitulado
A triste orla do Aqueronte, de
A mulher-gorila e outros demônios, o narrador, diante dos dizeres “
Lasciate ogne speranza voi ch’intrate”
vocifera “porra nenhuma”, diante de um inferno que é só a cidade, com
seus pobres, nordestinos, putas, pretos, leprosos, pedintes e
engravatados, sem nada em que se possa ancorar o narrador, sem um centro
em que buscar sua essência, sem uma transcendência em que repousar do
fluxo que o arrasta, do fluxo de vozes, de divergências, de exaustão. O
conto final deste último livro, em contraponto, parece comodamente
situado à sombra de uma árvore frondosa que esteriliza a vegetação que
com ela divide o solo. Se é possível passar do inferno dantesco à
cidade, a uma multiplicidade produtiva e vital, talvez seja possível
derivar de Guimarães, desistir de seus encantos, de sua sedução
paralisante.
Como anuncia a premiação de que foi objeto, o livro de José Rezende
Jr. merece, sem dúvida, um segundo olhar. Pelo que realiza, pelo que
promete, por aquilo de que possivelmente teria podido abdicar. Por
aquilo que, nele, não parece terminado. Pelo pai que, espera-se, tenha a
hombridade de assassinar.
O autor JOSÉ REZENDE JR.
Mineiro de Aimorés, radicado em Brasília, o
escritor e jornalista JOSÉ REZENDE JR. foi repórter especial de O Globo,
JB, IstoÉ e Correio Brasiliense. Atualmente se dedica à literatura e às
oficinas de texto jornalístico que ministra pelo Brasil afora. Estreou
na ficção com A Mulher-Gorila e outros demônios (2005).
Contos de José Rezende Jr., ganhador do Jabuti,
apresentam prosa de fôlego e influência de Guimarães Rosa
TRECHO
eu morrendo e você pintando as unhas de vermelho
mesmo sabendo que suas unhas te deixarão com cara de puta, eu morrendo e
você com cara de puta, eu morrendo e você diante do espelho como quem
vai a uma festa dançar a noite inteira, a saia rodada que eu gostava de
ver rodando no meio do salão deixando à mostra suas pernas de ginasta e
exaurindo meu fôlego de amante sedentário (...)
Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor)
José Rezende Jr.
7Letras
88 págs.