"E se a poesia é dispensável, porque há milhares
de anos milhões de pessoas a praticam, e agora ela chegou airosamente
também à Internet?"
Affonso Romano de Sant'Anna
Os poetas não devem ser levados a sério
Enquanto escuto o último tiroteio na favela ao
lado, recebo de Alberto Dines, que criou na Internet o vigilante
"Observatório da Imprensa", um artigo publicado no "The
Economist", de Londres, intitulado "Injustiça poética"; um
artigo tão instigante que Daniel Piza o republicou na seção de cultura da
"Gazeta Mercantil". Vejam só: "The Economist" e a
"Gazeta", jornais voltados para a política econômica, falando de
economia poética.
O autor anônimo daquele ensaio fala de um paradoxo: ao mesmo tempo em que,
de um lado, parece haver um desprestígio editorial e mercadológico dos
poetas, por outro lado, "Len Fulton, da Dustbooks, que publica a
'Small Press Review', recebe livros de 300 novas pequenas editoras e outras
300 novas revistas todos os meses. Muitas pequenas editoras não sobrevivem
por muito tempo. Mas mais de 1.400 revistas e 800 pequenas editoras duram o
tempo suficiente para chegar ao 'Catálogo de Editoras de Poesia' bienal de
Fulton.".
Nota-se que quadruplicou o número de cursos de
criação literária nos Estados Unidos. Hoje são 285 universidades com 11 mil
estudantes nessa área, a metade dedicada à poesia. Há mais de 200 festivais
de poesia de cowboys nos Estados Unidos e viraram moda, recentemente, uns
torneios poéticos onde dois poetas se desafiam, em nove rounds, lendo um
poema cada um, até o confronto de um poema improvisado no final. Quem ganha
leva um cinturão de peso-pesado, como nas lutas de boxes. E as pessoas
pagam até US$ 20 para assistir a esse pugilato poético.
Vejam que coincidência. E quando as
coincidências começam a coincidir muito deixam de ser simples coincidência
para serem sintomas. Isto tanto com os tiroteios quanto com a poesia.
Nesses dias recebi de Alberto Carvalho - um intelectual finíssimo lá de
Aracaju, que tem coleções de revistas raras como a "Senhor" e que
adquire qualquer livro bom que surja em qualquer parte - recebi, repito, um
CD intitulado "A voz, o poema", com obras de 35 poetas
sergipanos. Sim, senhores, de Sergipe. E embora em matéria de Nordeste,
como Chirac e Reagan, que trocam o presidente do Brasil pelos do México e
da Bolívia, troquemos Aracaju por Maceió ou Natal, eu lhes garanto: a
poesia está viva e muito bem, lá em Sergipe.
Estou no meu escritório, diante do crepúsculo.
Já escutei o tiroteio das cinco e, antes que comece o tiroteio da sete na
favela ao lado, deixo fluir verdades na boca da noite e começo a ouvir
vozes desse CD de poesias que me veio de Sergipe. Uma diz: "Um louco
colhe amoras amarelas na varanda do hospício antes que um guarda com boca
de dragão descerre a cortina da noite".
Quantas mulheres neste disco! Que bom! Uma
delas revela que, enquanto preparava a comida da família, "só tia
Ester sabia pôr compressas na própria dor". E outra voz de homem
acrescenta: "Quando o dia chegou, com suas aves peraltas na lapela, a
cidade sorriu acanhada, dois poetas marrons assoaram o nariz". Mas o
poema termina com essa frase irônica e problemática: "Os poetas não
devem ser levados a sério".
Se não devem ser levados a sério, por que
"The Economist" e a "Gazeta Mercantil" estão
preocupados com a poesia? E se a poesia é dispensável, porque há milhares
de anos milhões de pessoas a praticam, e agora ela chegou airosamente
também à Internet?
Alguns de vocês já ouviram falar de Soares
Feitosa. Com uma pertinácia rara, alheio às convenções dos grupinhos
literários, ele está colocando na Internet não só a poesia de poetas vivos,
mas todo Camões, Augusto dos Anjos e outros tantos, e está fazendo sozinho
o que entidades governamentais e universidades não fazem.
No artigo do "The Economist", no
entanto, faltou analisar isto: a invasão da Internet por parte dos poetas.
Estão eles passando por cima das editoras e livrarias, unindo o que há de
mais primitivo e tribal ao que há de mais avançado tecnologicamente.
Há um mistério com a poesia, vocês sabem. E
quando havia no país não só menos tiroteio, mas menos cronistas e mais
crônica, Rubem Braga fez uma intitulada "O mistério da poesia",
tentando entender por que o verso do colombiano Aurélio Arturo, "Trabajar
era bueno en el sur, cortar los arboles, hacer canoas de los troncos",
não lhe saía da cabeça e de onde vinha a sua poesia.
Em 1962 - quando 99% de vocês não haviam
nascido, publiquei, como estudante, meu primeiro livrinho, "O
desemprego do poeta" - que tinha tudo a ver com o que se disse antes.
Lá anotava uma frase de João Cabral, nos anos 40, que dizia que os poetas
deveriam se utilizar da tecnologia da época: o rádio. Infelizmente ele não
a utilizou. Depois veio a televisão. De minha parte, experimentei o rádio e
a TV, sobretudo quando Dilea Frate e Alice Maria ousadamente me aliciaram
para tal. Hoje o CD e a Internet são dois instrumentos que caíram nas mãos
dos poetas. Acabo de receber uma antologia de poetas de Maui - uma daquelas
ilhas perdidas no Pacífico - e, de Juiz de Fora, Iacyr Freitas promete-me
um CD. De Brasília, chega-me uma nova e promissora revista dedicada à
tradução de poetas estrangeiros e divulgação de brasileiros,
"Gargula".
Entrementes, ouço formidáveis tiroteios na
favela ao lado. Há uma semana que não nos deixam dormir e saímos à rua com
a alma agachada, humilhados. Minha vizinha mostra-me a bala que caiu no seu
quarto depois de varar a esquadria de alumínio e ricochetear pelas paredes
fazendo buracos e quebrando quadros.
E do disco de poesia saí uma voz que diz:
"Um dia adormeci cansado de tudo, quando acordei, Deus e o circo não
estavam mais na minha cidade.".
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário