sábado, 19 de janeiro de 2013

Cantiga de Adormecer Tamanduá - Paschoal Motta





Cantiga de Adormecer Tamanduá

A propósito de notícias veiculadas na Imprensa  Mineira,, no mês de abril de 1981, quando motorista, trocador e alguns passageiros, numa viagem entre Mariana e Ponte Nova, desceram do ônibus e pisotearam um tamanduá-bandeira no meio da rodovia. Jogado no porta malas, o mimercofagídeo ainda chegou com vida ao fim da viagem.

Ali, terminaram a chacina.
Paschoal Motta




Que mal faz tamanduá
com larga cauda na estrada?
Por fome chega até a
violência desabalada.

É dócil, de pouca pressa
dentro da noite e carinho.
- Que bicho, que fera é essa
atravessando o caminho?


Num ônibus, a viagem
segue seu rumo e destino:
homens com sono na aragem
já babam que nem menino.

Tem cada um seu sonhar
com medo de tanto abismo;
nessas montanhas sem mar,
de escuridão  e cinismo.

Tem de alimento o cupim
no topo do escalavrado;
caminha manso, e, assim,
um tanto e pouco avisado.

Há um destino acertado
na lida do ser vivente,
do homem, bicho, até a do
brejal e água corrente.



Há um mistério e futuro
de tempo certo no corte,
do verme no seu monturo,
do homem e sua coorte,

que enferruja esse remanso
nos caminhos do deserto;
destruidor sem descanso,
o homem é o mais esperto,

que põe natureza na hasta
contra o que der e vier;
de humano, nunca lhe basta
só lhe vale o que mais der.

Que mal faz tamanduá
zanzando na noite alta?
Pois só lhe falta o que há
por seu consumo na falta.

La vão por um só caminho
quarenta e três passageiros:
tornam do carro o seu ninho,
da terra toda, os posseiros.

- Quem incomoda meu indo  
em noite tão estrelada,
fazendo meu sono findo
no meio da minha estrada?
 
-         Não posso mais sossegar
meu ser de rei da natura.
-         Eu tudo vou sojugar 
consoante a Escritura.

- Não posso mais e inteira
a carcaça descansar;
e um tamanduá-bandeira
querendo cupim pegar.


 -         Ah, minha pressa na ida,       
meu sono, vida e sossego,
e esse tamanduá suicida
atravancando a estrada.

-         Para um bicho intrometido
só mesmo no ponta-a-pé.
-         Não pode ficar mais vivo. 
-         E nem eu dar marcha-a-ré.

- Como pode um desdentado
tamanduá me impedir?
-         Piso-lhe com o atanado
na minha gana de ir.

-         Por onde vou resoluto,
não pode um papa-formiga,
tão feio, de porte bruto,
me provocar numa briga.

 -         Vai pras profundas do inferno,

 asqueroso, bicho mau,

 descer para o mais eterno

e mais escuro perau.


Que mal faz tamanduá
com seu sem dentes na boca,
No negro asfalto e luar
e a companheira na toca?

Já descem homens do carro
com seus pés de fúria braba,
e pisoteiam feito em barro
o cego que atrapalhava

o seu cenário de ódio
E sua viagem traçada:
-         Um tamanduá serôdio
no meio da madrugada.

 - Só que sirva de lição

para bicho, índio, o que for...
atrapalhou, vai tacão
por me aumentar o rancor.


Procura cupim, formiga
o estúrdio tamanduá;
no apronto de sua vida,
há homens com pressa, há.

Que mal faz tamanduá
dando bandeira na estrada?
ah, se lépida preá,
correndo por pouco ou nada.

Ai gente velha esquecida
dos tempos de eu menino;
ai ternura enlouquecida
na noite de desatino.

E dentro de um porta-mala,
como se fosse finado,
tamanduá que nem fala
agoniza infausto fado.

Ai reforçadas botinas
já engraxadas de dor,
quantas serão as verrinas
bastantes nesse terror!?

Ai condenados, oh raça,
oh ruína e perdição,
ai sol morrendo na praça,
oh fel na palma da mão.

E a luz lhe brilha na cara,
a mancha branca nas costas
vai desenhando a mais rara
geometria nas postas.


Por um desvão da loucura
viaja o tamanduá;
e uns homens vãos na procura
de um tempo que não será...


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Nota: Paschoal Motta é de São Pedro dos Ferros














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